29/03/2020

Todos os dias parecem Domingo

Quando tinha 15 anos tinha um hábito pouco vulgar, ligava a aparelhagem na RFM para ouvir o top da semana, sentava-me nas escadas da minha casa, abria a porta do corredor e ficava ali horas a ouvir as músicas que tocavam na RFM. Uma das minhas esperanças era ouvir aquelas músicas que mais gostava, tinha uma cassete pronta para gravar o que saía da radiofonia. Esperava, pacientemente e mal começava aquela música que queria gravar ia a correr para aparelhagem e premia a tecla "record". Ficava a ouvir as músicas todas à espera daquela que eu queria. Como não havia internet naquela altura ou dinheiro para comprar os CD´s, aquela cassete era o meu tesouro. Não me aborrecia, antes pelo contrário, adorava aquele tempo só meu e o radio. Muitas vezes, dou por mim a pensar, porque hoje não consigo ter aquela paz que tinha aos 15 anos. Talvez porque já tenho 37 e passei a maior parte da minha vida a descobrir e aprender coisas. Com a idade veio o ano 2000, com aquele medo do apocalipse que toda a gente falava. O virar do século. O século veio, uma nova década também e fomos adquirindo outros hábitos, outras formas de pensar. Ganhei um novo estatuto, entrei na Universidade e experienciei tantas coisas. Uma delas foi a primeira desilusão amorosa. É como se ainda hoje sentisse aquela mágoa. Porém passou e só me tornou mais forte para o que agora se vive.
Podem não acreditar, mas hoje, em plena crise mundial causada pela pandemia de um virus invisível, sinto que tudo o que vivi até hoje foi para me preparar para o que estamos a viver. Uma realidade de incerteza, de confinamento, de convivência diária com os nossos medos, receios e ansiedades. Também há lugar para a esperança, de que este virus tem um propósito maior, mas que só saberemos qual, quando ele sentir que já não faz falta nenhuma ou domado. Não sei se na realidade ele pode ser domado. Nós estamos, neste preciso momento a construir uma nova forma de pensar para lutar contra o virus. Talvez não seja essa a nossa tarefa, talvez a maior tarefa que temos seja aceitar, resignar e aprender a viver o que é esta nova realidade. Existem muitos estudos, muitas formas de conseguir amenizar esta crise do mundo. Esta crise da Terra, da mãe Natureza que precisa de voltar a equilibrar-se. No entretanto nós vivemos aqui, face a face com o nosso maior medo, a solidão, o isolamento social, o medo. O medo paralisa, sabiam. Face a isto eu não tenho medo. Tenho raiva misturada com melancolia e impotência, que se calhar misturado numa proveta dá medo. Adiante, falei à pouco da aceitação, da criação de uma rendição interna ao bem maior, à soberania deste virus. Ninguém o consegue travar, ele segue o seu curso, o curso que tem que seguir para nos ensinar a estar quietos, parados, em suspenso, mas com um borbulhar interno imenso. Esse borbulhar hoje transborda. Transborda, não porque não sei lidar com a solidão, mas porque a incerteza é muito grande. Não é aquela incerteza de quando ouvia o programa todo na radio na esperança de ouvir a minha música para depois a eternizar na cassete, mas antes aquela incerteza de que ja passou algum tempo para percebermos que esta realidade não é passageira, mas que veio para ficar e que depois de ela passar o que virá. Tento viver todos os dias, no aqui e no agora, mas hoje sinto que o meu aqui a agora não é suficiente, porque estou a borbulhar, quase a revoltar-me. Com tanta raiva que preciso de canalizar e render-me a este novo futuro que está habitar em nós, nas nossas casas, nos nossos corpos, na nossa mente. Mentiria se não vos dissesse que isto vai passar. Eu sei que vai passar, confio que vai passar. No entanto a caminhada é longa.

2 comentários:

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